quarta-feira, 20 de junho de 2012

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Existem naturezas puramente contemplativas e totalmente impróprias para a ação que, no entando, sob uma impulsão misteriosa e desconhecida, agem às vezes com uma rapidez de que elas próprias se julgariam incapazes ( Baudelaire “ o mau vidraceiro”)

Se o objeto ou fenômeno em perspectiva no conto de Baudelaire tem estado em estudo por alguma outra disciplina que não a arte, isto é algo que não posso esclarecer. Digo com objeto; a verdade transmitida, e não seu método ou mesmo sua simbologia. A verdade, ou acesso, é algo que transpõe o processo de comunicá-la. Faço essa digressão com o propósito único de tornar transparente, nesse caso, o meu fenômeno em perspectiva. Certamente existem incontáveis estudos de qualidade sobre o método do autor, e mais ainda, sobre sua simbologia. Meu centro de interesse é justamente o objeto comunicado. Esse novo passatempo psíquico  deve-se inteiramente à acontecimentos recentes... 3 dias para ser exato. Hesito instintivamente em pensar objetivamente no tempo passado até este momento, o tempo que sucedeu-se aos acontecimentos daquela manhã não se mantém estável, fragmentos de momentos alongam-se e horas inteiras perdem-se num oceano de desolação. Tenho mantido, a grandes custos, minha mente incólume dos assédios da memória, que teima fazer surgir imagens e sentimentos em minha fragilizada percepção. Compreendo, contudo, que não tenho escolha a não ser permitir a visitação ao espetáculo grotesco a que fui submetido. Se não o fizer e minhas energias acabarem, a memória chegará com tamanho descontrole e ira que não poderei fazer nada a não ser assistir a insanidade corrompendo cada partícula de minha presença.Ter meu ser pervertido em tal nível existencial é algo que não poderia permitir. Existir é a última fronteira do ser, um processo tão complexo que beira o início em seu sentido essêncial. Enfrentarei o temor para não permitir-me macular a única verdade que me torna diferente de qualquer outra coisa.

Segunda feira, 9h. É uma manhã nublada que aponta um clima gelado o dia inteiro. Acordei de um sonho bizarro com raizes de árvores e bancos de praça. Toda vez que encostava a mão no banco ou os pés nas raízes era acometido por um ataque severo de náusea no corpo inteiro. Um tipo bastante atípico de sensação para ser sincero, e confesso que, se é que isso é possível, o sonho de fato ensinou-me algo. Quero dizer, antes dele jamais havia tido sensação tão pitoresca e sensivelmente perversa, agora se esforçar minha sintonia posso quase trazê-la para a realidade. Esta constatação aparentemente trivial levou-me a refletir mais profundamente sobre a natureza desse estado de consciência e sua capacidade de transmitir algo novo, ou pelo menos unir sensações produzindo algo diferente. Se do mundo real é que tiramos as sensações e com elas construímos nosso entendimento, como poderia ser possível construir algo a partir de um mundo, por assim dizer: não-real.  Por deus, uma manhã de segunda-feira e eu já sentia minha mente exaurida por esta obsessão. É claro, não faria nada naquele dia, tal como nos outros. Qual o propósito de um homem nos dias de hoje mesmo? Não posso responder, mas não serei outro escravo, ah isso é verdade, antes um aristocrata decadente. Inquieto com as novas indagações procurei por tentativas de inspiração. Abri a grande janela que dava para à avenida 7 andares a baixo. Os automóveis já aglomeravam-se em uma longa fila barulhenta. A partir dessa hora o sono é impossível para qualquer ser humano normal. Os grandes dinossauros a diesel espalham sua vibração por toda a estrutura do prédio em uma frequência particularmente desagradável. Algumas vezes ela é bastante para mover, vagarosamente, algum objeto em cima de uma superfície lisa, fazendo-o dar saltinhos e estalos que assemelham-se a um zumbido distante de algum inseto. A fumaça oleosa é outro fator, embora o grosso da jatância negra do diesel acabe acumulando-se na altura do quarto andar. Já ouvi falar que este prédio fora habitado por alguns poetas e bohemios famosos. Poesia é, agora, a última característica que se poderia atribuir a este lugar, não que o resto da cidade seja diferente, não que qualquer cidade seja diferente.

Ainda incapaz de dar continuidade ao pensamento procurava por inspirações. A cannabis não seria apropriada para esta tarefa em específico e eu a deixaria de lado, por algumas horas. Sentia que faltava-me sustentação total para concluir meu entendimento. Se eu pudesse mergulhar em uma piscina lisérgica poderia acessar essa incompletude. Ou talvez algum cogumelo, ou poderia lamber um sapo mágico. A verdade é que acabei vagando pelo apartamento, ia da janela da sala, por detrás do sofá, cruzava a mesa pela direita e acabava de frente a geladeira na cozinha, onde eu dava meia volta e fazia o mesmo caminho. Inconscientemente após horas neste processo desatinado consegui manter um padrão quase perfeito em minha caminhada, dando o mesmo número de passos a cada volta. O rádio, muito potente, ecoava um som frenético e desatinado, ainda assim dotado de uma melódia e composição incríveis. Fechei os olhos mantendo sempre o mesmo caminho e me descobri capaz de seguir o padrão sem precisar da visão. O movimento contínuo, a música hipnótica, a ausência de visão e o acúmulo dos constantes flash-backs sempre combatidos, acabaram gerando um estado de quase transe. Lançado em uma realidade insensata tornava-me progressivamente mais incapaz de destinguir a ordem das coisas. Veios de luz colorida atacavam meus olhos mesmo cerrados ao máximo e um universo abria-se no palco de minhas pálpebras. Abrir os olhos apenas tornava a superposição intolerável para o estômago. Não há outra maneira de explicar tal sensação de distorção espacial. Estar vivendo perspectivas diferentes superpostas é como dividir o cérebro em dois, como se pudesse olhar 90 graus para cima com um olho e 90 graus para baixo com outro. O equilíbrio no meio dessas duas perspectivas não entende onde afinal está o corpo e só resta a vertigem e o enjoo. Permaneci assim, de olhos fechados, que tão logo seriam um detalhe deixado para trás naquele mundo de efêmeros e instantes. A quantidade de eventos diferentes acontecendo aumentava a cada momento, os veios luminosos davam lugar a esteiras quadriculadas de luzes tão intensas que pareciam anular tudo ao seu redor. Fractais coloridos desdobravam-se preenchendo totalmente o campos de visão mas nunca parando de gerar mais e mais. A sensação de infinitude agredindo violentamente minha mente, é uma emoção que não deveria ser sentida, sentir sua mente travando como um computador, presa num círculo infinito de acontecimentos, incapaz de lidar com a compreensão falha de espaço. Tão logo algo surgia, já também esmaecia para dar lugar a novas construções. Quando finalmente fui capaz de libertar-me dos desdobramentos eternos, lembrei de minha pergunta inicial, e vi como ela havia sido expandida, transbordada para este momento. Se antes intrigara-me o aprendizado em um sonho, agora me era apresentado um verdadeiro mundo de fenômenos novos, uma construção de uma compreensão de todos. Algo como olhar as engrenagens da máquina, não a máquina de verdade, a máquina pensante, a subjetiva, a presença. Sentia-me cada vez mais imerso em um sonho frenético e assustadoramente real. A psicodelia habitual transformava-se em um delírio complexo e profundo. A sensação de ser triturado entre dois mundos dera lugar a uma unidade e uma consciência mais limpa situada numa realidade ilusória. O mais importante, contudo, fora a capacidade de ação. Antes era apenas um espectador, agora era capaz de fazer nesse mundo, de fato existia nele. Nas paredes vacilantes da sala via desenhos incompreensíveis e fragmentos de palavras enchiam o ambiente num caos desatinado. Conseguia agarrá-los, os fragmentos, e extrair-lhes os significados. Segurava, em minhas mãos, em minha posse, as informações, podia triturá-las, chegar perto de sua unidade. Por fim a sensação de prazer estético. Não acredito ser capaz de explicar este sentimento tão subliminar. Algo como um prazer profundo, imanente, inacessável em termos lógicos e por isso mesmo, por que não? Divino. A beleza do próprio sentido antes mesmo de ser beleza, o estético puramente em significado e não em entes. Corria pelo apartamento em busca de mais dessa substância celestial. Em oposição ao sonho, as mãos agora tocavam as verdades e não as coisas. O sentimento não mais de náusea, mas sim de esplendor. Não tinha mais controle nenhum sobre o que fazia. Abria sacos de comida e jogava o conteúdo no ar, via a movimentação dos gãos, da nuvem de farinha, a garrafa de vidro espatifando-se na parede e a luz fluorescente explodindo ao ser acertada por uma garrafa. Em tudo havia aquela apreciação, não havia mais limites, a vida destinava-se apenas a produzir beleza, queria estar nesse estado para sempre, queria gerar os eventos mais incríveis. Desatinado e cego pela loucura agarrei um pesado espelho da parede da sala. Segui com ele até a janela, os olhos faíscando, sentia a saliva escorrendo pelos lados da boca e arfava como um animal ensandecido. Agarrava forte o vidro querendo partí-lo em minhas mãos, decepando meus próprios dedos e zombar da beleza transviada que existiria nisso. Abri a janela e gritando lancei aquele pedaço mágico de cristal. O que seguiu-se fora uma fusão entre o desespero tétrico e a felicidade inalcançável. O espelho iniciou sua queda, refletindo as nuvens cinzentas em sua superfície, era como se um pedaço do próprio céu tivesse se desprendido e estivesse agora em queda livre em direção aos mortais que nada tem com isso. Nada além de lindo, metro a metro, cada instante mais perto de despejar sua cólera em quem estiver embaixo. Aguardei ansioso o impacto final, antevi a explosão, só mais um segundo e presenciaria o maior espetáculo da minha vida. Parecia que ia acertar um carro, aprumei os calcanhares. O carro moveu-se, o vidro errou o veículo por alguns centímetros, caiu direto no asfalto, um impacto seco que produziu um som melancólico e irritante. Algumas pessoas olharam para cima, recolhi-me rápido e fechei as cortinas. A decepção fora inegável. Havia eu saído de meu transe alucinógeno um momento antes do vidro acertar o chão ou de fato nada de belo existia naquilo? O som de sirene colocou-me de saída, ainda tinha que bolar alguma boa história se me pegassem. Cheguei à calçada e um algomerado se formara na rua, aproximei-me e no alsfato negro jazia os pedaços arruinados do espelho. Em meio ao burburinho ouvi alguém dizendo que era lindo o modo como os pedacinhos refletiam a paisagem, dei um imenso sorriso.
E
”E embrigado por minha loucura, girtei-lhe furiosamente:

A vida bela de se ver! A vida bela de ser ver.!

Essas brincadeiras nervosas não são isentas de perigo, e pode-se, às vezes, pagar caro por elas. Mas o que importa a eternidade da danação a quem encontrou num segundo o infinito da fruição( Baudelaire “ o mau vidraceiro”)

Um comentário:

  1. Bastante inquietantes as duas últimas postagens, aguçam a curiosidade do leitor em saber qual será a atitude dos personagens sobre o destino da escultura e se escapará do libirinto psicodélico entre sonho/realidade.
    O que chamou a minha atenção foi a similaridade dos desfechos, em ambos textos os personagens quebram objetos; ou melhor, em um o despedaçar é um penar, um sofrimento que parece não ter fim. E no outro, é um prazer, uma espécie de libertação.
    Parabéns pelas tramas de pensamento traduzidas em palavras, como sempre remete uma profunda reflexão do autor, e também porque surgiram as cores! Mesmo que ainda fruto de um libirinto mental, as cores parecem se sobrepor à "tinta" do carvão.

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