Existem naturezas
puramente contemplativas e totalmente impróprias para a ação que, no entando,
sob uma impulsão misteriosa e desconhecida, agem às vezes com uma rapidez de
que elas próprias se julgariam incapazes ( Baudelaire “ o mau vidraceiro”)
Se o objeto
ou fenômeno em perspectiva no conto de Baudelaire tem estado em estudo por
alguma outra disciplina que não a arte, isto é algo que não posso esclarecer.
Digo com objeto; a verdade transmitida, e não seu método ou mesmo sua
simbologia. A verdade, ou acesso, é algo que transpõe o processo de
comunicá-la. Faço essa digressão com o propósito único de tornar transparente,
nesse caso, o meu fenômeno em perspectiva. Certamente existem incontáveis
estudos de qualidade sobre o método do autor, e mais ainda, sobre sua simbologia.
Meu centro de interesse é justamente o objeto comunicado. Esse novo passatempo
psíquico deve-se inteiramente à
acontecimentos recentes... 3 dias para ser exato. Hesito instintivamente em
pensar objetivamente no tempo passado até este momento, o tempo que sucedeu-se
aos acontecimentos daquela manhã não se mantém estável, fragmentos de momentos
alongam-se e horas inteiras perdem-se num oceano de desolação. Tenho mantido, a
grandes custos, minha mente incólume dos assédios da memória, que teima fazer
surgir imagens e sentimentos em minha fragilizada percepção. Compreendo,
contudo, que não tenho escolha a não ser permitir a visitação ao espetáculo
grotesco a que fui submetido. Se não o fizer e minhas energias acabarem, a
memória chegará com tamanho descontrole e ira que não poderei fazer nada a não
ser assistir a insanidade corrompendo cada partícula de minha presença.Ter meu ser pervertido em tal
nível existencial é algo que não poderia permitir. Existir é a última fronteira
do ser, um processo tão complexo que beira o início em seu sentido essêncial.
Enfrentarei o temor para não permitir-me macular a única verdade que me torna
diferente de qualquer outra coisa.
Segunda
feira, 9h. É uma manhã nublada que aponta um clima gelado o dia inteiro.
Acordei de um sonho bizarro com raizes de árvores e bancos de praça. Toda vez
que encostava a mão no banco ou os pés nas raízes era acometido por um ataque
severo de náusea no corpo inteiro. Um
tipo bastante atípico de sensação para ser sincero, e confesso que, se é que
isso é possível, o sonho de fato ensinou-me algo. Quero dizer, antes dele
jamais havia tido sensação tão pitoresca e sensivelmente perversa, agora se esforçar
minha sintonia posso quase trazê-la para a realidade. Esta constatação
aparentemente trivial levou-me a refletir mais profundamente sobre a natureza
desse estado de consciência e sua capacidade de transmitir algo novo, ou pelo
menos unir sensações produzindo algo diferente. Se do mundo real é que tiramos
as sensações e com elas construímos nosso entendimento, como poderia ser
possível construir algo a partir de um mundo, por assim dizer: não-real. Por deus, uma manhã de segunda-feira e eu já
sentia minha mente exaurida por esta obsessão. É claro, não faria nada naquele dia,
tal como nos outros. Qual o propósito de um homem nos dias de hoje mesmo? Não posso
responder, mas não serei outro escravo, ah isso é verdade, antes um aristocrata
decadente. Inquieto com as novas indagações procurei por tentativas de
inspiração. Abri a grande janela que dava para à avenida 7 andares a baixo. Os
automóveis já aglomeravam-se em uma longa fila barulhenta. A partir dessa hora o
sono é impossível para qualquer ser humano normal. Os grandes dinossauros a
diesel espalham sua vibração por toda a estrutura do prédio em uma frequência
particularmente desagradável. Algumas vezes ela é bastante para mover,
vagarosamente, algum objeto em cima de uma superfície lisa, fazendo-o dar
saltinhos e estalos que assemelham-se a um zumbido distante de algum inseto. A
fumaça oleosa é outro fator, embora o grosso da jatância negra do diesel acabe
acumulando-se na altura do quarto andar. Já ouvi falar que este prédio fora
habitado por alguns poetas e bohemios famosos. Poesia é, agora, a última
característica que se poderia atribuir a este lugar, não que o resto da cidade
seja diferente, não que qualquer cidade seja diferente.
Ainda
incapaz de dar continuidade ao pensamento procurava por inspirações. A cannabis
não seria apropriada para esta tarefa em específico e eu a deixaria de lado,
por algumas horas. Sentia que faltava-me sustentação total para concluir meu
entendimento. Se eu pudesse mergulhar em uma piscina lisérgica poderia acessar
essa incompletude. Ou talvez algum cogumelo, ou poderia lamber um sapo mágico.
A verdade é que acabei vagando pelo apartamento, ia da janela da sala, por
detrás do sofá, cruzava a mesa pela direita e acabava de frente a geladeira na
cozinha, onde eu dava meia volta e fazia o mesmo caminho. Inconscientemente
após horas neste processo desatinado consegui manter um padrão quase perfeito
em minha caminhada, dando o mesmo número de passos a cada volta. O rádio, muito
potente, ecoava um som frenético e desatinado, ainda assim dotado de uma
melódia e composição incríveis. Fechei os olhos mantendo sempre o mesmo caminho
e me descobri capaz de seguir o padrão sem precisar da visão. O movimento contínuo,
a música hipnótica, a ausência de visão e o acúmulo dos constantes flash-backs sempre combatidos, acabaram
gerando um estado de quase transe. Lançado em uma realidade insensata tornava-me
progressivamente mais incapaz de destinguir a ordem das coisas. Veios de luz
colorida atacavam meus olhos mesmo cerrados ao máximo e um universo abria-se no
palco de minhas pálpebras. Abrir os olhos apenas tornava a superposição
intolerável para o estômago. Não há outra maneira de explicar tal sensação de
distorção espacial. Estar vivendo perspectivas diferentes superpostas é como
dividir o cérebro em dois, como se pudesse olhar 90 graus para cima com um olho
e 90 graus para baixo com outro. O equilíbrio no meio dessas duas perspectivas
não entende onde afinal está o corpo e só resta a vertigem e o enjoo. Permaneci
assim, de olhos fechados, que tão logo seriam um detalhe deixado para trás naquele
mundo de efêmeros e instantes. A quantidade de eventos diferentes acontecendo
aumentava a cada momento, os veios luminosos davam lugar a esteiras
quadriculadas de luzes tão intensas que pareciam anular tudo ao seu redor.
Fractais coloridos desdobravam-se preenchendo totalmente o campos de visão mas
nunca parando de gerar mais e mais. A sensação de infinitude agredindo
violentamente minha mente, é uma emoção que não deveria ser sentida, sentir sua
mente travando como um computador, presa num círculo infinito de
acontecimentos, incapaz de lidar com a compreensão falha de espaço. Tão logo
algo surgia, já também esmaecia para dar lugar a novas construções. Quando
finalmente fui capaz de libertar-me dos desdobramentos eternos, lembrei de
minha pergunta inicial, e vi como ela havia sido expandida, transbordada para
este momento. Se antes intrigara-me o aprendizado em um sonho, agora me era
apresentado um verdadeiro mundo de fenômenos novos, uma construção de uma
compreensão de todos. Algo como olhar as engrenagens da máquina, não a máquina
de verdade, a máquina pensante, a subjetiva, a presença. Sentia-me cada vez mais imerso em um sonho frenético e
assustadoramente real. A psicodelia habitual transformava-se em um delírio
complexo e profundo. A sensação de ser triturado entre dois mundos dera lugar a
uma unidade e uma consciência mais limpa situada numa realidade ilusória. O
mais importante, contudo, fora a capacidade de ação. Antes era apenas um
espectador, agora era capaz de fazer nesse mundo, de fato existia nele. Nas
paredes vacilantes da sala via desenhos incompreensíveis e fragmentos de
palavras enchiam o ambiente num caos desatinado. Conseguia agarrá-los, os
fragmentos, e extrair-lhes os significados. Segurava, em minhas mãos, em minha
posse, as informações, podia triturá-las, chegar perto de sua unidade. Por fim
a sensação de prazer estético. Não acredito ser capaz de explicar este
sentimento tão subliminar. Algo como um prazer profundo, imanente, inacessável
em termos lógicos e por isso mesmo, por que não? Divino. A beleza do próprio
sentido antes mesmo de ser beleza, o estético puramente em significado e não em
entes. Corria pelo apartamento em busca de mais dessa substância celestial. Em
oposição ao sonho, as mãos agora tocavam as verdades e não as coisas. O
sentimento não mais de náusea, mas sim de esplendor. Não tinha mais controle
nenhum sobre o que fazia. Abria sacos de comida e jogava o conteúdo no ar, via
a movimentação dos gãos, da nuvem de farinha, a garrafa de vidro espatifando-se
na parede e a luz fluorescente explodindo ao ser acertada por uma garrafa. Em tudo
havia aquela apreciação, não havia mais limites, a vida destinava-se apenas a
produzir beleza, queria estar nesse estado para sempre, queria gerar os eventos
mais incríveis. Desatinado e cego pela loucura agarrei um pesado espelho da
parede da sala. Segui com ele até a janela, os olhos faíscando, sentia a saliva
escorrendo pelos lados da boca e arfava como um animal ensandecido. Agarrava
forte o vidro querendo partí-lo em minhas mãos, decepando meus próprios dedos e
zombar da beleza transviada que existiria nisso. Abri a janela e gritando
lancei aquele pedaço mágico de cristal. O que seguiu-se fora uma fusão entre o
desespero tétrico e a felicidade inalcançável. O espelho iniciou sua queda,
refletindo as nuvens cinzentas em sua superfície, era como se um pedaço do
próprio céu tivesse se desprendido e estivesse agora em queda livre em direção
aos mortais que nada tem com isso. Nada além de lindo, metro a metro, cada
instante mais perto de despejar sua cólera em quem estiver embaixo. Aguardei ansioso
o impacto final, antevi a explosão, só mais um segundo e presenciaria o maior espetáculo
da minha vida. Parecia que ia acertar um carro, aprumei os calcanhares. O carro
moveu-se, o vidro errou o veículo por alguns centímetros, caiu direto no
asfalto, um impacto seco que produziu um som melancólico e irritante. Algumas
pessoas olharam para cima, recolhi-me rápido e fechei as cortinas. A decepção
fora inegável. Havia eu saído de meu transe alucinógeno um momento antes do
vidro acertar o chão ou de fato nada de belo existia naquilo? O som de sirene
colocou-me de saída, ainda tinha que bolar alguma boa história se me pegassem.
Cheguei à calçada e um algomerado se formara na rua, aproximei-me e no alsfato
negro jazia os pedaços arruinados do espelho. Em meio ao burburinho ouvi alguém
dizendo que era lindo o modo como os pedacinhos refletiam a paisagem, dei um
imenso sorriso.
“E
”E embrigado por minha loucura, girtei-lhe furiosamente:
A vida bela de se ver!
A vida bela de ser ver.!
Essas brincadeiras
nervosas não são isentas de perigo, e pode-se, às vezes, pagar caro por elas.
Mas o que importa a eternidade da danação a quem encontrou num segundo o
infinito da fruição ” ( Baudelaire “ o mau vidraceiro”)
Bastante inquietantes as duas últimas postagens, aguçam a curiosidade do leitor em saber qual será a atitude dos personagens sobre o destino da escultura e se escapará do libirinto psicodélico entre sonho/realidade.
ResponderExcluirO que chamou a minha atenção foi a similaridade dos desfechos, em ambos textos os personagens quebram objetos; ou melhor, em um o despedaçar é um penar, um sofrimento que parece não ter fim. E no outro, é um prazer, uma espécie de libertação.
Parabéns pelas tramas de pensamento traduzidas em palavras, como sempre remete uma profunda reflexão do autor, e também porque surgiram as cores! Mesmo que ainda fruto de um libirinto mental, as cores parecem se sobrepor à "tinta" do carvão.