O que penso
do realismo
Há algum
tempo, acompanhei o desenvolvimento de um caso bastante intrigante ocorrido
numa cidade próxima. Vim a ter conhecimento de uma certa Dona Xanda,
proprietária de um pequeno restaurante destinado aos moradores do bairro, mas
que vinha experimentando um aumento espantoso de sua freguesia. Todo este
alarde devia-se a um suposto tempero secreto, o qual somente a Dona Xanda sabia
preparar. O rumor sobre a comida e seu condimento milagroso espalhou-se em
grande velocidade, de forma que até mesmo o jornal televisivo local foi cobrir
o caso. Após provar da refeição, a reporter enviada corroborou todos os boatos
e efusivamente afirmou tratar-se de um gosto muito especial, algo como páprica
doce, mas amargo ao mesmo tempo. As opiniões quanto ao sabor do tempero, eram
bastante conflitantes, mas todos concordavam no que se tratava da qualidade do
gosto – excepcional. Os dias passavam e Dona Xanda teve de contratar ajudantes,
pois não dava mais conta de todo o trabalho extra. A boa senhora era
pressionada diariamente para revelar seu segredo, ou pelo menos parte dele. De
fato, toda aquela atenção não tardaria a causar algum revés, e assim o foi numa
manhã de sábado, quando uma senhora, suposta amiga de Dona Xanda, cruzou
sorrateiramente o balcão do restaurante com apenas um objetivo em mente: Achar
e roubar o tempero secreto. A gatuna improvável sondou a cozinha por alguns
minutos, até descobrir um vidro de café instantâneo preenchido com um pó sem
cor. Sem ter dúvidas de que se tratava do tal condimento, provavelmente uma
mistura de ervas trituradas, pegou o vidro e saiu rápido, sua carreira no
crime, entretanto, acabara antes de começar. Foi vista saindo da cozinha,
pisando na ponta dos pés de forma caricatural, agarrada ao pote de vidro. Meu
tempero! Gritou Dona Xanda. Nem precisava, a larápia já tinha sido detida pelos
frequentadores. O jornal exibia a manchete: “ Dona Xanda e seus ingredientes
mágicos sofrem tentativa de furto “ vinculando a foto do pote e seu conteúdo
misterioso. Agora todos sabiam sua consistência. Era seco, em forma de pó,
poucamente pigmentado. O bar, como era de se esperar, decolou e não havia
pessoa que já não tivesse escutado sobre sua comida incrível. Um mês inteiro
passou-se e na semana que havia programado de ir experimentar a saborosa
refeição o jornal estampa outra bomba: “ Dona Xanda sofre de severa depressão e
não abre seu badalado restaurante nessa segunda feira”. A notícia intrigou-me e
de certa forma soube naquele momento que alguma coisa estava na iminência de acontecer.
Três dias depois parei no posto de gasolina para abastecer e ouvi dois
frentistas falando algo sobre o Dona Xanda, riam e pareciam debochar de algo.
Senti um frio no estômago, entrei no carro e voei para casa, liguei o computador
e procurei sobre o assunto. Num site de notícias achei o que procurava.
“O segredo
de Dona Xanda
Dona Xanda,
desesperada devido as baixas vendas em seu restaurante, não sabia mais a quem
apelar, estando sem dinheiro para investir e numa localização pouco
privilegiada. Certa noite, ao navegar pela internet – havia aprendido com seu
neto há 3 meses – deparou-se com um ótimo site de culinária, cadastrou seu nome
e escreveu opiniões na área destinada. Algum tempo depois recebeu um email de
um suposto vendedor de temperos exóticos e estrangeiros. Dona Xanda conversou
muito com o homem, que garantiu o sabor inigualável, mas que mostrava-se apenas
quando em contato com a comida. Dona Xanda que não era boba suspeitou desta
característica tão incomum, mas seu neto já havia contado sobre as maravilhas
da química e mesmo na televisão ela via toda a hora como a ciência podia ser
incrível e criar coisas que ela não podia compreender. O preço? Apenas 30
reais, depositados em uma conta. Recebeu quatro vidros preenchidos por um pó
misterioso, que se provado não tinha gosto de nada, ou quase nada -parecia um
pouco com terra. Para tirar a prova, Dona Xanda convidou a família para um
almoço e usou uma boa quantidade do produto. No fim do almoço revelou que
acrescentara um toque especial àquela refeição. Ao ouvir ela falar em pote de
café e pó esbranquiçado seu filho levantou-se rápido, correu a cozinha e pediu
para ver. Dona Xanda assustada sem entender nada alcançou-lhe o produto do qual
seu filho deu uma boa provada, esfregando o conteúdo nas gengivas.” Não, não há
nenhum problema aqui mãe, parece ser algum tempero esquisito mesmo” e saiu da
cozinha com um sorriso amarelo. No fim todos concordaram que pensando a
respeito, a comida estava melhor e que inclusive a neta, sempre tão recatada,
acabou servindo-se duas vezes. O que seguiu-se fora o crescimento do mito e da
clientela e ,assim, por um mês inteiro, Dona Xanda serviu incontáveis clientes
satisfeitos em provar de seus quitutes mágicos. Com o escassamento do tempero,
Dona Xanda viu-se incapaz de providencias mais, o vendedor não respondia seus
emails, e não tinha ideia de como prepará-lo. Entrou em depressão, seus
clientes, o que pensariam dela? Decidiu que o correto a fazer seria revelar
toda a verdade. Assim o fez, na quarta-feira ligou para o jornal local e contou
toda a história. Em vinte minutos dois homens recolhiam a sobra de um dos
vidros para testes. No fim da tarde ficou-se provado que o conteúdo dos vidros
tratava-se de uma mistura de cinzas humanas e animais. Alguém, por piada, ou vigarice,
de alguma forma apropiara-se do despejo de algum crematório e vendera seu
singular produto a uma senhora disposta a usá-lo em comidas. “
No fim por
não apresentar nenhum risco e ser totalmente estéril as cinzas não foram
consideradas um perigo a saúde e Dona Xanda não foi processada. Restou-lhe
continuar seu restaurante, agora tolido do público anterior. Confesso que ri por
um bom tempo de tudo isso. A diversão, porém, logo transformou-se em uma
pequena irritação, a irritação; em raiva, a raiva; em um ódio ardido que
consumia minhas noites. Por que a velha não ficou de boca fechada? Quero dizer,
ela poderia cuspir na comida e todos continuariam a gostar. Se ela tentasse,
por apenas um dia, servir seus pratos sem os restos de gente, iria perceber
tudo. Que tipo de moral incrivelmente esmagadora é essa? Penso mais como uma
crença, uma religião desatinada, inquestionada, uma ode ao real. Por que razão
não ocoreu à Dona Xanda simplesmente mentir. Sua comida de fato era boa, sua
sorte por outro lado, uma porcaria, sem seu tempero mágico nunca iria livrar-se
do buraco em que se encontrava. Não faz sentido para mim o motivo de alguém
livrar-se disso em função do real, o real fetichizado, o real irreal. O que
ataca minha mente e provoca contrações de desgosto é pensar que o sabor mágico,
esse sim era verdadeiro. A comida temperada com aquela substância misteriosa
foi por aquele mês inteiro, verdadeiramente mais saborosa. Ao agarrar o mito e
trazê-lo diretamente para o âmago da ilusão, para a construção mais falsa de
todas, Dona Xanda destruiu o que realmente importava, o sentimento.
Transfourmou algo tão sublime e incrível em cinzas humanas, essas sim, falsas,
desimportantes, mentirosas. Posso garantir que jamais aquelas pessoas comerão
um prato com o mesmo sabor , o sabor do idealismo, o sabor real e verdadeiro de
um significado. Dona Xanda eu a odeio por isso, odeio sua veneração por uma
mentira, odeio como você mata as coisas. Engessando seus significados,
atrelando tudo a um âmbito material composto por nada mais do que distorções e
fantasias. Sinto suas garras pegajosas todo dia ao acordar, ao ser lançado
contra minha vontade em suas confissões assassinas, suas explicações
desimportantes. O Jornal exibiu triunfante a história toda. Não havia dúvidas,
mais um ponto para a verdade, não existem temperos mágicos, não existem sequer
sabores, a velha apenas queria enganar uns trouxas, viva ao cotidiano, viva ao
comum, baixem suas cabeças e agarrem seus objetos, sabores mágicos apenas em
restaurantes caros, o que vocês estão pensando?
Eu digo
foda-se Dona Xanda. Ao fechar os olhos imagino-me em um grande parque, a grama
que não é grama, as luzes que não são luzes. Posso apenas sentir, ignorar sua
existência e conservar seu significado. Mais pessoas juntam-se à grande
inauguração. Tudo é tão solto, tão livre. O grande pórtico de entrada canta uma
música alegre, em minha mente as notas formam letras, as letras palavras: “Bem-vindo
ao surrealismo”, Deus estou em casa.